Escrevendo para recuperar a escrita

Em meus anos de colégio achava divertido escrever. Me arriscava com algumas poesias que orgulhosamente lia em sala. Com o tempo, ou a falta dele, e o interesse por outras atividades fui deixando de lado essa escrita mais solta. Durante a graduação escrevia pouco. Pra ser sincero, as disciplinas que exigiam escrever quase não me interessavam, e quando interessavam meus textos não pareciam agradar muito.

A escrita foi aparecer novamente praticamente só durante o mestrado. Foi difícil compreender que a escrita científica exige outras habilidades. É preciso saber o que ler, fazer notas que serão úteis no futuro, organizá-las e organizar as referências pra não ter que ler tudo novamente. Além disso, a fôrma já vem pronta: do formato às margens, do tamanho da letra à maneira de citar outro autor. Tudo tem uma regra, e, pra quem está começando, é prudente segui-las.

Com o tempo, consegui entender melhor como usar o texto acadêmico para construir melhor minhas ideias. A estrutura e o rigor formal acabam servindo como balizas, que guiam e imprimem uma certa cerimônia ao texto. Ora, um paper interessa a outros pesquisadores, pessoas que tem leituras semelhantes a sua. Logo, não dá pra escrever de maneira mais solta. E essa expectativa de uma possível leitura qualificada foi progressivamente me travando. Na minha percepção havia pouco espaço pra escrever alguma coisa nova. A cada frase que escrevia me sentia quase obrigado a descobrir algum autor, que veio antes de mim, para endossar o que havia escrito.

Por um lado, isso nos obriga a ler um bocado. Mas essa leitura é por vezes enviesada. O viés de confirmação se manifesta quando buscamos autores que reforcem nossas ideias – algo que fazemos isso com frequência, embora seja chato admitir.

O rigor e o processo

O rigor da escrita acadêmica traz benefícios, como a necessidade de leitura e aprofundamento, mas também impõe limitações. Com a prática, ao invés de ir me soltando, sentia que os dedos ficavam mais duros e que qualquer traço de originalidade na escrita ia ficando pra trás. Não conseguia fazer como alguns colegas que a cada artigo acrescentavam uma pequena informação diferente pra justificar a escrita de um novo paper – ao mesmo tempo em que afirmavam ser contra o tal do produtivismo acadêmico.

Em algumas revistas e congressos há ainda a imposição de um modelo a ser seguido, como o famigerado IMRAD, comumente usado nas áreas tecnológicas. O texto deve seguir a estrutura fixa de Introdução, Metodologia, Resultados, Análise e Discussão. A ideia de fatiar o trabalho em seções pré-determinadas ajuda bastante na triagem de artigos, mas também dá a entender que o processo da construção do que está sendo apresentado foi linear.

O processo que levou àquelas ideias é apagado – e faz sentido que seja assim. Já não temos tempo pra ler o que nos interessa com textos concisos, imagine se os textos acadêmicos apresentassem contemplassem as digressões dos autores sobre o tema.

Não estou aqui advogando pelo processo, como se esse fosse algo mais importante que o resultado. Definitivamente não penso assim. Pelo contrário, o que me leva a ter interesse pelo processo é o resultado. Se o resultado não for bom, não tenho curiosidade pra saber do processo. Mas, como na música Metrô Linha 743, dou mais valor à alguma coisa se conheço melhor como ela foi pensada.

Na graduação tive contato com os cadernos de Leonardo da Vinci e fiquei fascinado de poder ver como ele pensava. Estudos de desenhos para suas pinturas, escritos teóricos, registros do dia a dia. Tudo ali, exposto e incompleto. Sem muita pretensão. Esse registro do momento onde a ideia ainda estava em formação, sendo desenvolvida é fascinante. Quem tiver interesse, o Victoria and Albert Museum tem os cadernos digitalizados para consulta online.

Print de um dos cadernos de Da Vinci, disponível online no Victoria and Albert Museum

Compartilhar para melhorar

E aí volto a uma coisa que li no “Show Your Work”: é preciso mostrar seu trabalho antes dele estar completo. O autor, Austin Kleon, argumenta a favor de compartilharmos nossos work-in-progress como forma de ganharmos algum feedback antes do trabalho pronto.

Não seria isso muito importante para o fazer científico? Enquanto estou com o trabalho em desenvolvimento, existe uma margem significativa para alterações de percurso. Ora, não é isso que exigimos dos estudantes nas disciplinas de projeto, por exemplo? Que tragam suas ideias desenhadas para orientação, ainda que essas ideias não estejam exatamente prontas. O ideal é esse, que as ideias não estejam acabadas, polidas, mas que estejam minimamente maduras.

O músico Brian Eno argumenta pela ideia de scenius, em favor da inteligência criativa de uma comunidade, ao invés de um único indivíduo, ao que ele chama de scenius. Segundo Eno, as boas ideias nem sempre nascem boas, mas são lapidadas pela comunidade, na medida em que são compartilhadas enquanto estão sendo desenvolvidas.

Brian Eno sobe Scenius (em inglês).

Costumo fazer isso com meus colegas, jogar uma ideia e ver como ela volta. Foi assim que surgiram algumas das pesquisas mais interessantes que participei. Mas sinto que faltava ter isso registrado e isso tem a ver com minha aposta nesse formato de mini-ensaios. Esses textos-croquis me deixam mais livre pra escrever sem preocupar muito com formato e rigor. Afinal, estou escrevendo pra ter ideias, pra compartilhá-las e, com sorte, ouvir suas reverberações.

Acredito que algumas das coisas que escrever por aqui vão acabar virando, com muito trabalho, artigos científicos. Mas esse não é o foco. A ideia é exercitar a escrita e compartilhar. Assim como Lambros Malafouris, no seu livro “How Things Shape Mind”, considero a escrita não como um registro do pensamento, mas o próprio pensamento.

Isso não quer dizer que eu não consiga pensar sem escrever, mas que um determinado tipo de pensamento se constrói na escrita, outros no desenho, na música etc. O pensamento se constrói na fricção com o mundo, seja lá em qual suporte for.

E para não deixar as ironias de lado, em pleno 2025 escolho como formato para compartilhar esses mini-ensaios um blog. Talvez poucas coisas da Internet estejam mais em desuso do que um blog. Mas é o que me resta, pois não sei dançar. Se soubesse estaria no Tik Tok, mas provavelmente pensando outras coisas.


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