As casas que nos habitam

A disciplina que tenho ministrado desde 2016 com meus colegas para graduandos em Arquitetura e Urbanismo da UFMG tem invariavelmente lidado com o projeto de uma casa. Já projetamos casas para estudantes em pequenos lotes, edifícios onde módulos habitacionais poderiam ser plugados à estrutura, pequenos condomínios e mais recentemente, duas casas compartilhando um mesmo lote. Variações sobre o mesmo tema.

Nessa disciplina os alunos tem sua primeira experiência de projeto e devem lidar com muitas questões que se relacionam mas não são o projeto da casa: topografia, softwares BIM, uma ou outra coisa de legislação, estrutura etc., isso enquanto aprendem desenho técnico e a lidar com escalas. Acrescente a isso que não temos um cliente — real ou fictício — para balizar as escolhas dos estudantes a partir do seu próprio gosto.

Nesse contexto, a demanda pelo projeto de uma casa reduz a necessidade de um conhecimento profundo sobre o objeto, afinal todos temos uma ou mais experiências sobre o morar, embora não necessariamente em uma casa. De todo modo, podemos dizer que todos sabemos articular — bem ou mal — os espaços de uma casa de pelo menos um jeito: aquele que nos é familiar.

Esse é justamente o primeiro limite do exercício. O tema da casa é excessivamente próximo dos alunos, e desconstruí-lo é uma tarefa relativamente complexa. Acontecem muitos casos de alunos que percebem ao final do exercício que repetiram a organização espacial da casa dos pais, dos avós ou em alguma outra casa que lhe fosse relevante. E essa relevância emocional em poucos casos coincide com relevância arquitetônica.

Embora essa ideia de relevância arquitetônica possa ser discutida e definida de muitas maneiras, considero que entram nessa categoria as casas (e apartamentos) cujos espaços são bem dimensionados e articulados, com materiais adequados, bem ventilados e iluminados. Não é muito, eu sei, mas o nível médio da produção imobiliária brasileira é muito baixo. Logo, encontramos imóveis com essas características com pouca frequência, infelizmente.

Por essa razão digo que é raro relevância emocional e arquitetônica coincidirem. A maior parte das pessoas nem sequer tem acesso a imóveis projetados a partir de critérios que priorizem a qualidade ambiental ao invés de priorizar critérios financeiros, como é a regra.

Independente disso, as coisas que nos afetam não são orientadas por esses critérios, mas pelo que vivenciamos nesses lugares. Em alguns momentos, o espaço parece desvanecer para o background de nossa percepção para que os acontecimentos ganhem relevo. Mas os espaços determinam em grande medida os acontecimentos. Essa relação de diálogo entre espaço e o que acontece neles é o que vai nos conectando emocionalmente às casas que vivemos. Assim, uma casa pode ter muitas dimensões. Algumas delas são reveladas pelo tempo e uso. Outras emergem quando já não a habitamos mais, revelando o relevo psíquico desses espaços, que muitas vezes podem nos surpreender. Nesse sentido é que podemos perguntar se somos nós que habitamos as casas ou se são elas que nos habitam.

O habitar

Such a cosy room
The windows are illuminated
By the sunshine through them
Fiery gems, for you
Only for you
— Our House — Crossby, Stills, Nash & Young (1970)

A palavra habitar, que no latim *habitare* inicialmente estava relacionada com a ideia de posse, foi se desdobrando em outros usos, chegando até a palavra hábito, associada tanto à ideia de vestimenta (p.ex. hábito religioso) quanto à ação repetida no tempo. E o habitar passa justamente por esses dois caminhos, pela relação com o corpo e o tempo.

Nós deixamos de ser nômades na medida em que aprendemos como cultivar nosso próprio alimento através da agricultura. Contudo, o tempo imposto pela natureza nesse cultivo, bem como os cuidados necessários para uma boa colheita exigiram a invenção de um espaço que nos permitisse esperar. Esperar o desenrolar do tempo, as chuvas e o calor. Esperar as plantas crescerem e serem colhidas. É dessa necessidade de espera que surge a ideia da casa. Essa casa, ou cabana primordial, surge como um dispositivo que estrutura a experiência do tempo. Para Sloterdijk (2004), a morada dos primeiros agricultores seria como um “relógio habitado” de onde se observava a plantação e os dias se desenrolando um a um, até o momento da colheita.

Na medida em que fomos parcialmente nos desconectando dos ritmos naturais e nos afinando aos ritmos urbanos, nossas casas foram assumindo outras funções físicas e psíquicas. Nosso *habitat* foi sendo transformado. As tecnologias contemporâneas ajudaram a dissolver as barreiras físicas da casa, que passou a ser interpenetrada por ondas de todos os tipos, nos ligando virtualmente a todos os pontos do planeta. Passamos a trabalhar nos mesmos espaços em que dormimos e relaxamos, muitas vezes em contato com outras pessoas que também trabalham e relaxam nas mesmas condições.

A pandemia de COVID-19 revelou que a dimensão de estruturação do tempo persiste nas casas modernas. Naquele período, quando precisamos ficar abrigados por um longo período em nossas casas, com receio de adoecermos, experimentamos um tempo dilatado, quase sem fim, a espera de uma vacina que finalmente veio. Para Sloterdijk (2004), as casas modernas podem ser compreendidas como sistemas espaciais de imunidade, projetadas para nos proteger das incertezas e ameaças do mundo externo.

O relevo psíquico da casa

Na mesma direção, o artigo “Sonhos de um país em destruição”, da filósofa Juliana de Moraes e do professor e psicanalista Gilson Iannini, trata dos sonhos de brasileiros durante a pandemia e da presença da casa nesses sonhos. Na medida em que nossas casas pareciam não dar conta de garantir proteção contra o vírus, começamos a sonhar com casas disfuncionais, problemas estruturais e coisas fora do lugar.

Mesmo em períodos “normais”, é relativamente comum sonharmos com nossas casas. O interessante é que ao sonhar, nossa casa pode ser a casa que vivemos na infância, a casa dos avós, ou aquele apartamento que você morou quando se mudou de cidade. Mesmo depois que nos mudamos ou que as casas já tenham sido demolidas, elas continuam a existir em nossos sonhos.

Uma captura do Google Street View do local onde um dia foi a casa de minha avó paterna em Divinópolis, MG.

Gastón Bachelard, no livro *Poética do Espaço* (1957), diz que
“Através dos sonhos, as várias moradas em nossas vidas se interpenetram e retêm os tesouros de dias passados. E quando estamos em nossa nova casa, quando as memórias de outros lugares que vivemos voltam a nós, viajamos para a terra do Infância Imóvel, imóvel como todas as coisas Imemoriais são”. (Bachelard, 1957, p.52)

Mas não só durante o sonho as outras casas aparecem. Quando nos mudamos de casa, por exemplo, levamos um resto da casa antiga que se revela nos gestos cotidianos. Demoramos algum tempo até encontrarmos os itens que nós mesmos organizamos na casa nova. Da mesma forma que fazíamos na casa antiga, abrimos a primeira gaveta da cozinha procurando um copo que não está lá, pois os copos agora ficam em outro lugar. Entramos num cômodo escuro e erramos a altura ou o lugar do apagador, ou acertamos a altura do apagador da outra casa. Ou mesmo quando acordamos e por alguns segundos não reconhecemos aquele quarto como nosso.

As casas que habitamos se inscrevem em nosso corpo, estruturando e organizando as experiências de outras casas. Para Bachelard (1957, p.58) somos “o diagrama das funções do habitar aquela casa particular, e todas as outras casas são apenas variações sobre um tema fundamental”.

De volta à disciplina

Se as casas que habitamos compõem uma série na qual os primeiros exemplares influenciam os próximos, como as casas que vivemos influenciam nas casas que projetamos?

Uma resposta possível passa por considerar que durante a etapa de projetos imaginamos como seria habitar aquilo que projetamos. Ou dizendo de outra forma, que habitamos nossos projetos por meio da imaginação. Nesse sentido, as ferramentas que usamos pra projetar — desenhos em escala, modelos 3d etc. — não são apenas instrumentos para representação, mas a própria construção dessa imaginação. Para quem tiver interesse, escrevi sobre isso em profundidade com meu amigo, Giovanni Rolla, professor de filosofia na UFBA aqui.

É possível supor que na medida em que os arquitetos ganham experiência com o projetar, essa capacidade imaginativa vai sendo aprimorada. Logo, os arquitetos experientes conseguem antever através da imaginação as possibilidades que determinado espaço pode oferecer ao ser habitado — o que não significa que todas as possibilidades podem ser antevistas, obviamente.

Essa habilidade deve, portanto, ser desenvolvida para expandir o repertório de espacialidades para além daquelas que tivemos acesso presencialmente. Nas últimas edições da disciplina passamos a incluir estudos de projetos em sala de aula coletivamente. Escolhemos um projeto que consideramos de qualidade e relacionado ao tema do trabalho e projetamos em sala seus desenhos técnicos, fotografias e vamos percorrendo o projeto, elencando qualidades técnicas, evidenciando soluções e imaginando possibilidades de apropriação. O exercício tem se mostrado um processo coletivo de descoberta, onde por vezes nos deparamos com questões que não estavam evidentes num primeiro momento.

A pertinência desse tipo de exercício para construir a capacidade de imaginar-se “como se” estivesse habitando o espaço é de grande relevância mesmo em tempos de projetos automatizados, construídos a partir de critérios financeiros ou gerados por inteligências artificiais. Isso é, mesmo em um contexto onde caminhamos para a geração quase instantânea de layouts e soluções projetuais (p.ex. Finch), ainda é necessário alguém para decidir dentre todas as possibilidades, qual é a mais interessante do ponto de vista arquitetônico.

Se projetar é, antes de tudo, um exercício de imaginação, essa imaginação não parte do vazio. Ela se ancora em referências que não escolhemos inteiramente — são gestos aprendidos, espacialidades absorvidas, experiências que se inscrevem no corpo sem que percebamos. O relevo psíquico da casa se manifesta nesse movimento: projetar não é apenas conceber um espaço futuro, mas também revisitar lugares passados, muitas vezes sem intenção.

Os projetos são, em parte, reverberações dessas experiências. As qualidades e os problemas das casas vividas retornam no desenho, algumas vezes como reprodução inconsciente, outras como tentativa de superação. Se há repetição, há também a possibilidade de deslocamento: perceber o que carregamos para dentro do projeto é o primeiro passo para transformar o que projetamos. No fim, imaginar um espaço não é apenas definir paredes, fluxos e usos. É, inevitavelmente, um exercício de reconhecer e transcender as casas que ainda nos habitam.


Se quiser saber quando publiquei algo, você pode me seguir no https://guivasconcelos.substack.com/


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